Ricardo Westin – Agência Senado
A iniciativa mais ousada que o governo brasileiro tomou nas últimas duas décadas em relação à cultura acaba de completar um ano. Trata-se do Vale-Cultura, um cartão magnético que é dado a quem trabalha com carteira assinada e que todo mês é carregado com R$ 50.
Os créditos são destinados ao consumo cultural. Podem ser gastos com produtos (livros, revistas, DVDs, instrumentos musicais, artesanato), cursos (dança, fotografia, artes cênicas) e apresentações (cinema, teatro, circo, shows musicais). O Vale-Cultura dá entrada gratuita nos 30 museus do governo federal, como o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, o Museu Imperial, em Petrópolis (RJ), e o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (MG). Os créditos são cumulativos e não expiram.
De acordo com o Ministério da Cultura, 264 mil trabalhadores já têm o Vale-Cultura e 27 mil estabelecimentos comerciais no país, incluindo lojas on-line, aceitam o cartão. Empresas de todos os portes oferecem o benefício aos funcionários. Entre as grandes, estão Saraiva, Bradesco, Banco do Brasil e Correios.
Lei Rouanet
A primeira proposta de criação do Vale-Cultura foi apresentada ao Congresso Nacional em 2006, pelo então deputado José Múcio Monteiro. Em 2009, chegou a segunda, redigida pelo Poder Executivo. Nenhuma das duas vingou. Em 2012, o Congresso começou a analisar o projeto de lei de um grupo de 28 deputados encabeçado por Manuela D’Ávila (PCdoB-RS).
Essa terceira proposta não foi engavetada porque a ministra da Cultura naquele momento, Marta Suplicy, transformou o Vale-Cultura numa das principais bandeiras de sua gestão e convenceu deputados e senadores da importância da iniciativa. Em questão de semanas, o projeto passou na Câmara e no Senado e virou lei (Lei 12.761/2012). A regulamentação levou alguns meses, e as primeiras empresas aderiram no final de 2013.
O Vale-Cultura é tão revolucionário para o setor cultural quanto a Lei Rouanet, de 1991, que concede incentivos fiscais a empresas e pessoas que financiam a cultura.
— À primeira vista, R$ 50 parece pouco. Mas, na realidade, não é — diz Marta Suplicy (PT-SP), já de volta ao Senado, após dois anos à frente do Ministério da Cultura. — Existem famílias que não conseguem gastar absolutamente nada com cultura, porque a prioridade é comprar comida, pagar a roupa do filho. Simplesmente não sobra dinheiro.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 4% dos brasileiros costumam ir ao museu e 14% frequentam o cinema. Somente 7% já entraram numa exposição de arte. Uma pesquisa do Instituto Pró-Livro aponta que os brasileiros leem, em média, quatro por ano. Na Espanha, como comparação, são dez por ano; na França, 15.
Desconto
Para Marta Suplicy, o Vale-Cultura “é fantástico” porque, de um lado, cria novos consumidores de produtos e serviços culturais e, de outro, dinamiza os negócios da cultura no Brasil.
O Vale-Cultura se assemelha ao tíquete alimentação e ao vale-transporte. Para o funcionário ter direito ao cartão, o empregador aplica um desconto quase simbólico no salário e cobre o valor restante. Para receber os R$ 50 do vale, quem ganha R$ 3 mil de salário, por exemplo, contribui com R$ 5, e os R$ 45 restantes são bancados pelo patrão. Em troca, o governo concede à empresa abatimentos no Imposto de Renda Pessoa Jurídica.
O Vale-Cultura é voltado principalmente para os empregados que ganham até cinco salários mínimos. Trabalhadores que estão acima dessa faixa salarial também podem ser beneficiados, porém sofrem descontos mais altos no contracheque (veja os valores no quadro acima).
Ainda há bastante espaço para o Vale-Cultura crescer. O Ministério da Cultura acredita que o cartão tem potencial para alcançar 42 milhões de trabalhadores.
O Vale-Cultura é facultativo. As empresas não são obrigadas a conceder o benefício. E mesmo os funcionários das empresas que o fornecem também podem optar por não recebê-lo.
O governo tem estimulado os sindicatos trabalhistas a incluir o Vale-Cultura na pauta de reivindicações. Os bancários de todo o país tiveram sucesso. Os trabalhadores da indústria química, petroquímica, plástica e farmacêutica da Bahia, ainda não, segundo Carlos Itaparica, um dos dirigentes do sindicato da categoria:
— As empresas do nosso setor não nos dão o Vale-Cultura sob o argumento de que o sistema vai ser burlado e que os trabalhadores vão gastar o dinheiro com outras coisas que não a cultura. Isso não me convence. Me parece uma desculpa para não conceder o benefício – diz ele.
Para Marta Suplicy, muitos empresários resistem a conceder o Vale-Cultura por causa das dificuldades econômicas do país. Os patrões precisam ter dinheiro livre em caixa para carregar os cartões, e a compensação do governo só é dada meses mais tarde, na apuração do Imposto de Renda.
— As empresas ainda vão perceber a importância do Vale-Cultura — continua Marta. — A cultura torna as pessoas mais criativas e sensíveis, elas passam a ter uma visão de mundo mais ampla. Isso é qualificação. A empresa, claro, também sai ganhando.
Livro e DVD
Tânia Andrade, de 52 anos, está entre os 80 mil funcionários dos Correios que no mês passado ganharam o Vale-Cultura. Dias depois, ela saía de uma livraria de Brasília levando um DVD da sambista Alcione e o último livro da trilogia Cinquenta Tons de Cinza.
— Esse cartão é maravilhoso, porque consumir cultura não é barato — diz. — Ao cinema, por exemplo, não dá para ir sempre. Tem que procurar o dia mais barato. Com o Vale-Cultura, você tem mais oportunidades.
Tânia foi aos recentes shows de Beyoncé e Paul McCartney na capital. Ela não tinha o cartão.
— Espero que outra estrela venha logo a Brasília e, principalmente, que aceite o vale-cultura — torce.