Uma compra superior a meio bilhão de reais, feita sem licitação pelo governador João Doria (PSDB) para aquisição de respiradores dado o caráter de urgência, causou estranhamento em integrantes da administração estadual e levou o Ministério Público de SP a abertura de uma investigação para apurar as circunstâncias dessa operação.
São 3.000 aparelhos importados da China por um intermediário do Rio de Janeiro a um custo de US$ 100 milhões (ou mais de R$ 550 milhões). Esse é o maior gasto individual da gestão tucana com ações contra o coronavírus e representa quase a metade do R$ 1,2 bilhão estimado pelo governo de custos extras com a pandemia.
A Secretaria da Saúde estadual afirma que cumpriu as exigências legais e os decretos estadual e nacional de calamidade pública. Aponta, ainda, a urgência do equipamento, dado o agravamento da pandemia no estado, e o fato de o governo federal ter comprado toda a oferta de respiradores nacionais.
Mesmo tendo adotado o combate ao novo coronavírus como uma das vitrines de seu governo, e esperar pela entrega dos equipamentos já nesta semana, Doria nada detalhou até agora sobre essa compra em seus comunicados praticamente diários no Palácio dos Bandeirantes.
A única divulgação oficial se limitou às poucas mais de 20 linhas do despacho publicado no Diário Oficial do estado na última quinta (23) e retificado na sexta (24). A aquisição é atribuída à Coordenadoria Geral de Administração, que organiza e realiza compras pela Secretaria da Saúde aos vários órgãos da pasta.
Promotores ouvidos pela Folha de S.Paulo afirmam que a dispensa de licitação para compras emergenciais é prevista em lei. Ela não dá, porém, carta branca para o administrador público realizar aquisições de qualquer forma.
Um dos pontos que chamam dos promotores, além da rapidez da entrega (tratando-se de importação da China), é o valor que deve ser pago em cada unidade: média de R$ 180 mil.
Mesmo em uma corrida mundial em busca desse tipo aparelho, a aquisição de ventiladores é considerada elevada em qualquer circunstância.
O governo paulista comprou dois modelos diferentes: um deles é o ICU Ventilator SH300, um respirador top de linha, e o Ax-400, da empresa Comen, que é um ventilador de anestesia, ambos fabricadas por empresas chinesas.
O gasto com respiradores pelo governo paulista é acima daquele feito com outros modelos de ponta no mercado, encontrados à venda pela reportagem com preços na faixa de R$ 60 mil. Também está acima de cotações mais antigas feitas para o SH300, em páginas de vendas de produtos médicos na internet, nas quais os preços varia de U$ 3.500 e U$ 20.000 (entre R$ 19 mil e R$ 107 mil pelo câmbio desta quarta-feira, 29).
Fontes do mercado de produção dos respiradores afirmam que, em meio à pandemia, os preços têm subido muito e apresentam grandes diferença até entre modelos idênticos, pois há uma espécie de leilão entre os produtos.
A reportagem encontrou unidades de respiradores, que devido à menor escala têm preço maior, por até R$ 145 mil.
No início de abril, o Ministério da Saúde anunciou a compra de 6.500 respiradores mecânicos no valor de R$ 322,5 milhões, o que dá uma média de R$ 49,6 mil por unidade. A compra foi feita de fabricante nacional, mas o prazo de entrega era bem maior do que o obtido pelo estado de São Paulo com o fornecedor chinês. No caso do governo federal, a entrega de 2.000 aparelhos ocorreria ainda em abril e o restante em até 90 dias.
A Secretaria da Saúde afirmou que “como o governo federal fez a aquisição de toda a produção nacional e, consequentemente, impediu que os estados comprassem respiradores no Brasil foi necessária a importação”. “Além disso, o Ministério da Saúde não deu perspectiva de entrega dos equipamentos, podendo levar até 90 dias, como noticiou a própria Folha”, diz o governo.
A gestão Doria afirma que os pacientes não podem esperar esse tempo e que os aparelhos serão disponibilizados no SUS paulista. “Os respiradores estão em importação da China, por meio de aquisição de uma companhia escolhida após pesquisa de mercado junto a oito empresas por apresentar as melhores condições de mercado, como prazo e garantia de entrega e volume necessário, atendendo o objeto pretendido”, diz nota. O comunicado ainda afirma que cumpriu as exigências legais e os decretos estadual e nacional de calamidade pública. “Os recursos são do Tesouro do Estado e a Secretaria está à disposição de todos os órgãos fiscalizadores para apresentar as informações que eles considerem necessárias”.
No caso da compra feita por Doria, assinada no dia 23, os aparelhos devem chegar ainda nesta semana ao Brasil, o que acrescenta ao total o valor do frete. Uma empresa de origem britânica, com sócios brasileiros e escritório no Rio, a Hichens Harrison & Co, intermediou o negócio do governo paulista com os fabricantes chinesas.
Os sócios brasileiros são Pedro Moreira Leite, que foi vice-presidente do conselho fiscal do Flamengo, e Fabiano Kempfer, que atuou no Ministério do Trabalho na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A empresa é especializada no comércio com a China e já atua também como fornecedora para o Metrô do Rio. Com operação nos Estados Unidos, a empresa também atuou na venda de respiradores para o governo de Nova York.
A reportagem procurou a Hichens Harrison, que respondeu por meio de nota. “Somos representantes e distribuidores exclusivos da Shenzen Comen Medical e da Beijing Eternity, fábricas de equipamentos hospitalares chineses, dentre outras empresas do gigante asiático. Por conta de nossos acordos de confidencialidade pedimos que faça contato com a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Saúde para maiores informações sobre aquisição de ventiladores pulmonares pelo Governo do Estado”, diz o comunicado da empresa.