
A chefe da Agência Federal de Medicina e Biologia (FMBA) da Rússia, Veronika Skvortsova, afirmou na última semana que uma vacina contra o câncer colorretal desenvolvida no país estaria “pronta para uso” após resultados positivos em testes pré-clínicos. A declaração, no entanto, é vista com cautela pela comunidade científica, já que os dados não foram publicados em revistas especializadas — todas as informações disponíveis vêm de comunicados oficiais do governo russo.
Chamada Enteromix, a vacina será oferecida gratuitamente a todos os cidadãos russos após aprovação oficial. Ela é personalizada a partir da análise genética de cada tumor, ensinando o sistema imunológico a atacar células malignas específicas.
Nos testes iniciais, os resultados foram impressionantes: redução de até 80% no tamanho dos tumores, desaceleração do crescimento e efeitos colaterais mínimos. Inicialmente voltada ao câncer colorretal, a pesquisa já avança também para glioblastoma, um tipo agressivo de câncer cerebral, e melanoma, o câncer de pele mais letal.
Segundo a agência estatal Tass, Skvortsova disse durante o Fórum Econômico do Leste, em Vladivostok, que a pesquisa levou vários anos, sendo os últimos três dedicados a testes pré-clínicos obrigatórios, e que a vacina “agora está pronta para uso, aguardando apenas aprovação oficial”.
Especialistas, contudo, lembram que novos medicamentos precisam passar por um processo rigoroso de avaliação. “Primeiro são feitos estudos em laboratório e em animais. Se houver potencial, iniciam-se os testes clínicos em humanos, divididos em fases 1, 2 e 3. Muitas vacinas apresentam bons resultados iniciais, mas não avançam porque não se mostram eficazes ou têm muitos efeitos adversos”, explica Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
A publicação dos dados em revistas científicas é considerada essencial para garantir a confiabilidade das informações e embasar a análise das agências reguladoras, como a Anvisa, no Brasil. No caso russo, além da ausência de dados divulgados, não está claro se a autorização esperada seria apenas para iniciar estudos clínicos em humanos ou se já permitiria a aplicação em pacientes fora do ambiente de pesquisa.
“O problema é a falta de transparência. Não sabemos como foram conduzidos os estudos pré-clínicos, que moléculas estão sendo utilizadas ou como ocorrerão os ensaios clínicos. Países sérios registram todos os testes na plataforma ClinicalTrials, justamente para dar visibilidade”, ressalta Kfouri.
No fim de 2023, Skvortsova já havia indicado que a vacina poderia começar a ser aplicada “na prática” em 2025. O presidente Vladimir Putin também demonstrou grandes expectativas, chamando o imunizante de “inovação”.
À revista americana Newsweek, o oncologista David James Pinato, do Imperial College London, reforçou que, com as informações disponíveis, não é possível determinar em que fase está o desenvolvimento da vacina. “Se os testes em animais foram concluídos, o próximo passo seria a autorização para ensaios clínicos em ambiente de pesquisa, não o uso direto em pacientes. Mas não há clareza sobre resultados, revisões por pares ou mesmo sobre o tempo de desenvolvimento.”
A Enteromix foi criada por cientistas do Centro Gamaleya, do Instituto Hertsen de Pesquisa Oncológica de Moscou e do Centro de Pesquisa do Câncer Blokhin.
Nos testes pré-clínicos, segundo Skvortsova, ela mostrou segurança, redução do tamanho dos tumores e desaceleração de sua progressão entre 60% e 80%, além de aumento na taxa de sobrevivência.
A tecnologia utilizada é a de RNA mensageiro (RNAm), a mesma das vacinas contra a Covid-19. A diferença é que se trata de uma vacina terapêutica, destinada a estimular o sistema imunológico a combater tumores já existentes, e não a prevenir a doença. Para isso, proteínas do tumor de cada paciente são incorporadas à formulação, permitindo que o organismo reconheça e ataque as células cancerígenas, que normalmente “se escondem” do sistema imune.
Outros laboratórios também desenvolvem vacinas terapêuticas com RNAm e vêm divulgando resultados em revistas científicas. A mais avançada é a da farmacêutica americana Moderna, em parceria com a MSD, contra o melanoma, já em fase 3 de testes clínicos. Publicações no The Lancet mostraram redução de até 62% no risco de morte ou metástase. A empresa também estuda versões contra câncer de pulmão e de bexiga.
No Brasil, a Fiocruz retomou neste ano um projeto de vacina contra o câncer baseada em RNAm, interrompido durante a pandemia para priorizar os estudos sobre a Covid-19. A pesquisa ainda está em fase inicial, focada em tipos de câncer de mama.
Especialistas avaliam que as primeiras vacinas contra o câncer devem alcançar aprovação global até 2030. Se confirmada em larga escala, a Enteromix pode inaugurar uma nova era na oncologia, aproximando a medicina personalizada do acesso público.
*** Com informações do O Globo






