Para entender a aliança “estranha” entre iFood e Uber, é preciso apagar da mente a ideia de que um aplicativo serve para uma coisa só. Na China, o conceito que reina é o do “superapp”, e seu rei absoluto é o WeChat. E é a ameaça de que esse modelo desembarque no Brasil, trazido pela 99Food e pela Keeta, que fez velhos rivais se unirem em uma estratégia de sobrevivência.
Ponto 1: O WeChat não é um App. É o Ar Digital Chinês.
Pense no WeChat (da empresa Tencent) não como um aplicativo, mas como um sistema operacional paralelo para a vida. Ele começou como um simples mensageiro, tipo WhatsApp. Mas hoje:
Redes Social e Mensagens: É o WhatsApp e o Instagram dos brasileiros.
Pagamentos: É o Pix, o cartão de crédito e a carteira digital. Você paga de um cafezinho na esquina a um imposto federal dentro do chat, escaneando um QR Code.
Serviços Públicos: Marca consultas em hospitais públicos, tira passaportes e paga IPTU.
Delivery e Serviços: Pedir comida, chamar táxi, agendar viagens, contratar um encanador. Tudo sem sair do app.
A Didi (dona da 99) e a Meituan (dona da Keeta) são, elas próprias, superapps especializados em seus nichos (mobilidade e estilo de vida, respectivamente), e ambas operam dentro do ecossistema do WeChat. A batalha na China é entre esses gigantes que querem controlar todos os aspectos da sua vida digital.
Ponto 2: A Ameaça Fantasma que Uniu iFood e Uber
A 99Food e a Keeta chegaram ao Brasil focando apenas no delivery… por enquanto. Mas a iFood e a Uber não estão olhando para o que elas são hoje. Estão olhando para o que elas podem se tornar amanhã, com o know-how e a tecnologia de suas matrizes.
O pesadelo da iFood e da Uber seria este cenário:
O app da 99 (de transporte) de repente ganha uma aba de “Comida” com a 99Food, e depois uma aba de “Pagamentos” para você pagar a corrida e a comida, e ainda transferir dinheiro para amigos.
O app da Keeta começa a entregar não só pizza, mas também compras de supermercado, remédios e, depois, oferece agendamento de serviços locais.
Nesse mundo, por que um usuário baixaria 5 apps separados (Uber, 99, iFood, Rappi, PicPay) se um ou dois resolvem tudo? A conveniência radical do superapp é uma arma de destruição em massa contra aplicativos especializados.
Ponto 3: A Parceria “WeChat-Brasileira”: Uma Tentativa de Criar um Ecossistema
A união iFood-Uber é a tentativa mais óbvia de criar um ecossistema integrado à moda brasileira, antes que as chinesas o façam.
A Uber tem o transporte de pessoas, a entrega rápida de mercadorias (Uber Direct) e uma base de milhões de usuários acostumados a pagar pelo app.
O iFood tem a maior base de restaurantes, domínio no delivery de comida e uma relação direta com o desejo do consumidor.
Juntas, elas não são mais duas empresas. São uma plataforma combinada de mobilidade e alimentação. O próximo passo lógico? Integrar um sistema de pagamentos P2P (entre pessoas) para concorrer com o PicPay e o Pix na ponta digital. Elas estão se unindo para tentar construir a sua própria “versão tupiniquim” de um mini-superapp, porque sabem que a batalha futura não é por mercado de comida, mas pelo domínio da tela inicial do seu celular.
Conclusão: A guerra no delivery brasileiro não é mais uma briga de rua entre entregadores. Tornou-se uma partida de xadrez geopolítica, disputada por conglomerados globais. A jogada iFood-Uber foi um movimento defensivo para evitar que o “efeito WeChat” — a consolidação de toda a vida digital em uma única plataforma — se repita no Brasil sob o domínio das novas concorrentes chinesas. O prêmio final não é a sua próxima refeição, mas o direito de ser o app que controla todos os outros aspectos da sua vida.






