Um movimento político e jurídico de grande repercussão sacudiu o cenário legislativo brasileiro, com a formalização de um mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) por quatro bancadas da Câmara dos Deputados. O objetivo central da ação é a suspensão imediata da tramitação do Projeto de Lei (PL) da Dosimetria, uma matéria que propõe a redução de penas para condenados por crimes relacionados à tentativa de golpe de Estado, incluindo os eventos de depredação e invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. A iniciativa ocorre em um momento crítico, logo após a matéria ser aprovada de forma acelerada no Senado Federal, gerando intensos debates sobre a legalidade e a transparência do processo legislativo. A controvérsia se aprofunda ao considerar os potenciais impactos desse projeto de lei sobre casos em curso e o devido processo legal no país.
O Questionamento Legal no Supremo Tribunal Federal
Os Fundamentos da Ação e a Violação do Devido Processo Legislativo
As bancadas do Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) uniram-se para impetrar o mandado de segurança no STF, alegando graves vícios formais no processo legislativo que culminou na aprovação do PL da Dosimetria no Senado. A principal argumentação apresentada pelos deputados signatários reside na inadequada classificação de uma emenda crucial. Segundo os líderes das bancadas, uma alteração aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, sob a relatoria do senador Esperidião Amin (PP-SC), foi indevidamente considerada uma “emenda de redação”. Esta classificação, contudo, é vista como uma manobra para contornar preceitos constitucionais, uma vez que a emenda, na realidade, promove uma alteração substantiva e de mérito, ao modificar critérios de execução penal e excluir centenas de tipos penais do escopo original da norma.
A tese central das bancadas é que tal artifício visava explicitamente impedir o retorno obrigatório do projeto à Câmara dos Deputados, que é a casa iniciadora da matéria. Ao suprimir essa etapa essencial da deliberação legislativa, argumenta-se que houve uma grave burla ao princípio do bicameralismo constitucional, esvaziando o papel fundamental da Casa que deu origem ao projeto. O líder do PT na Câmara, por exemplo, enfatizou que essa supressão indevida do prazo regimental de vista na CCJ, sem a devida justificativa objetiva ou regime de urgência formalmente estabelecido, restringiu o debate parlamentar de forma inaceitável, violando as prerrogativas das minorias e fragilizando o processo democrático. A combinação desses supostos vícios revela uma fraude ao processo legislativo e um risco concreto de interferência indevida em julgamentos penais em curso no próprio STF, o que, para os autores da ação, exige uma intervenção judicial para preservar a separação de poderes e a integridade do Estado Democrático de Direito.
Tramitação Acelerada no Senado e os Impasses Gerados
Debate Constrangido e a Controvérsia da ‘Emenda de Redação’
A velocidade com que o Projeto de Lei da Dosimetria avançou no Senado Federal gerou críticas e levantou suspeitas desde o início. O texto, apresentado na manhã de uma quarta-feira na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), foi aprovado na mesma tarde e, em seguida, encaminhado e votado no Plenário do Senado, onde obteve 48 votos favoráveis e 25 contrários. Durante a tramitação na CCJ, diversos requerimentos foram apresentados por senadores governistas e da oposição. Houve pedidos de adiamento da votação, a solicitação de realização de audiências públicas para um debate mais aprofundado – dada a relevância da matéria e seus amplos impactos –, mas todos foram rejeitados pela maioria dos integrantes da comissão. Diante da persistência em acelerar o processo, os senadores governistas solicitaram vista para uma análise mais detalhada do projeto.
O presidente da CCJ, senador Otto Alencar (PSD-BA), concedeu o pedido, mas impôs um prazo drasticamente reduzido de apenas quatro horas para a análise. Essa medida foi amplamente contestada, uma vez que o prazo regimental usual para pedidos de vista é de cinco dias úteis. A justificativa para a pressa, implícita na redução do prazo, era a proximidade do encerramento do ano legislativo, que se daria no dia seguinte, uma quinta-feira. Se o prazo regimental de cinco dias fosse respeitado, a apreciação da matéria seria automaticamente transferida para o próximo ano legislativo. Além da celeridade, um dos principais impasses na CCJ era a dúvida sobre se o PL beneficiaria uma gama mais ampla de condenados, incluindo aqueles por crimes violentos, organização criminosa, crimes de responsabilidade e eleitorais. Para contornar essa questão e limitar o escopo, o relator Esperidião Amin incorporou uma emenda que restringia os benefícios apenas aos condenados pelos atos de 8 de janeiro, a qual foi classificada como de “redação”, evitando assim o retorno à Câmara e alimentando as alegações de vício formal no processo.
Implicações Amplas e o Cenário Pós-Aprovação
A aprovação do PL da Dosimetria no Senado e a subsequente remessa para sanção presidencial abrem um novo capítulo na discussão sobre justiça e o enfrentamento de crimes contra o Estado Democrático de Direito. A ação das bancadas no STF representa uma tentativa de última hora para reverter um processo que, segundo eles, foi eivado de irregularidades e que pode ter consequências profundas para a jurisprudência brasileira. A possibilidade de interferência em julgamentos em curso, especialmente aqueles relacionados aos eventos de 8 de janeiro, é uma das maiores preocupações levantadas pelos que se opõem ao projeto. Líderes políticos e especialistas têm advertido que a lei, se sancionada, poderá fragilizar a resposta judicial a crimes de natureza golpista e subverter a expectativa de punição proporcional aos danos causados ao Estado Democrático.
O posicionamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que declarou publicamente que só decidirá sobre a sanção após a análise completa do texto pelo Poder Executivo, adiciona um elemento de incerteza ao futuro do projeto. Enquanto isso, a mobilização social contra o PL da Dosimetria demonstrou a polarização da opinião pública. Manifestações populares, organizadas por frentes como Brasil Popular e Povo Sem Medo, ocorreram em diversas cidades, evidenciando a insatisfação de setores da sociedade com a matéria. O conteúdo do PL, que propõe que crimes de tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, quando praticados no mesmo contexto, resultem na aplicação da pena mais grave em vez da soma das penas, e que também reduz o tempo para progressão do regime de prisão, gera grande preocupação. Especialistas consultados alertam que, apesar da emenda do relator, o PL ainda pode ter efeitos colaterais, potencialmente beneficiando não apenas os condenados pelo 8 de janeiro, mas também outros criminosos comuns ao reduzir o tempo de progressão de pena, impactando a segurança jurídica. A lista de potenciais beneficiários diretos ou indiretos, que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro e militares de alto escalão investigados pelos eventos golpistas, eleva a tensão em torno da decisão presidencial e da eventual intervenção do Supremo Tribunal Federal, que agora detém a chave para definir o destino do controverso Projeto de Lei da Dosimetria.






