O cenário musical brasileiro se despede de Lindomar Castilho, figura icônica conhecida como o “Rei do Bolero”, que faleceu no último sábado (20), aos 85 anos. A notícia de seu óbito, confirmada pela filha do artista, a coreógrafa Lili de Grammont, por meio de uma publicação em suas redes sociais, marca o fim de uma trajetória complexa. Lindomar Castilho foi celebrado por seus sucessos musicais que dominaram as paradas na década de 1970, mas sua imagem também é indelévelmente associada a um dos casos mais emblemáticos de feminicídio no país, o assassinato de sua ex-esposa, a cantora Eliane de Grammont. Sua vida, marcada por brilho artístico e uma tragédia pessoal profunda, deixa um legado que continua a provocar reflexão sobre a dualidade entre arte e conduta individual, e as cicatrizes permanentes da violência.
A Trajetória Artística e o Apogeu Musical
Lindomar Castilho, nascido Lindomar Cabral na cidade de Rio Verde, Goiás, em 1940, iniciou sua jornada musical que o levaria ao estrelato. Sua estreia fonográfica ocorreu em 1962 com o álbum “Canções que não se Esquecem”, um marco inicial para uma carreira que prometia. Rapidamente, Castilho se destacou pela interpretação apaixonada de boleros e sambas-canções, gêneros que ressoavam profundamente com o público brasileiro da época, ávido por melodias românticas e letras que falavam de amor e desilusão.
Na década de 1970, Lindomar Castilho atingiu o auge de sua popularidade. Ele se tornou um dos artistas de maior vendagem de discos no Brasil, com sua voz melodiosa e carisma conquistando milhões de fãs. Sua fama transcendeu as fronteiras nacionais, com seus álbuns sendo lançados e bem recebidos inclusive nos Estados Unidos, um feito notável para um cantor brasileiro na época. Entre seus muitos sucessos, a música “Você é Doida Demais” solidificou-se como sua canção mais icônica, imortalizada na memória popular e, décadas mais tarde, resgatada como tema de abertura da aclamada série de comédia “Os Normais”, da TV Globo, apresentando sua obra a uma nova geração.
O Encontro e o Casamento com Eliane de Grammont
O universo artístico foi também o palco para o encontro de Lindomar Castilho com Eliane de Grammont. Ela, uma jovem cantora em ascensão, cruzou o caminho de Castilho nos corredores da extinta gravadora RCA, um local efervescente de talentos e novas descobertas. O namoro de dois anos floresceu, culminando no casamento em 1979. Desse enlace, nasceu a única filha do casal, Liliane.
Contudo, o que parecia ser o início de uma bela história conjunta no cenário musical e pessoal, rapidamente se desfez. O casamento foi breve, durando apenas um ano e encerrando-se em 1980, devido a sérios problemas conjugais. Agressividade, crises constantes de ciúme por parte de Castilho e o agravamento de seu alcoolismo tornaram a convivência insustentável. A recusa do cantor em aceitar o divórcio e a separação de Eliane de Grammont prenunciaram uma tragédia que marcaria para sempre a vida de todos os envolvidos e a história da música brasileira.
O Crime que Chocou o País: O Feminicídio de Eliane de Grammont
A madrugada de 30 de março de 1981 entrou para a história como um dos episódios mais chocantes de violência de gênero no Brasil. Lindomar Castilho ceifou a vida de Eliane de Grammont com cinco tiros nas costas, durante uma apresentação da cantora na casa de shows paulista Café Belle Epoque, em São Paulo. Eliane estava no palco ao lado de seu então namorado, o cantor Carlos Randall, que também foi atingido por um dos disparos, mas sobreviveu.
O crime, perpetrado em um local público e em um momento de alegria e arte, gerou comoção nacional e uma imediata repercussão midiática. Castilho foi preso em flagrante no mesmo dia, e o subsequente processo judicial culminou em um júri popular. A sentença condenou o “Rei do Bolero” a 12 anos de prisão, encerrando um capítulo sombrio em sua vida pública e dando início a um período de reclusão. Após cumprir sua pena, Lindomar Castilho viveu grande parte de sua vida em ostracismo, longe dos holofotes que um dia o consagraram. Embora tenha gravado um álbum ao vivo nos anos 2000, nunca mais recuperou o prestígio e a visibilidade de outrora, carregando consigo a mancha de seu ato.
A Voz da Filha: Reflexões Sobre um Legado Dividido
A morte de Lindomar Castilho trouxe à tona não apenas as memórias de seus sucessos, mas também a dor e as reflexões de sua filha, Lili de Grammont, que tinha apenas dois anos de idade quando perdeu a mãe de forma tão brutal. Em sua manifestação pública, a coreógrafa expressou uma profunda análise sobre a complexidade do legado de seu pai e as consequências devastadoras de suas ações.
Lili de Grammont abordou a dualidade da figura paterna e do agressor em sua mensagem de despedida: “Meu pai partiu! E como qualquer ser humano, ele é finito, ele é só mais um ser humano que se desviou com sua vaidade e narcisismo. E ao tirar a vida da minha mãe também morreu em vida. O homem que mata também morre. Morre o pai e nasce um assassino, morre uma família inteira”. Suas palavras ressoam como um testemunho pungente da destruição que a violência pode causar, não apenas à vítima, mas a todos os envolvidos, incluindo o próprio agressor e sua família. Ela concluiu sua declaração com um desejo de cura e transformação: “Diante de tudo isso, desejo que a alma dele se cure, que sua masculinidade tóxica tenha sido transformada”, uma fala que ecoa a crescente discussão social sobre a necessidade de desconstruir padrões de comportamento prejudiciais e promover uma cultura de respeito e não-violência.
O Legado Complexo e o Debate Social Permanente
O falecimento de Lindomar Castilho reitera a complexidade inerente a figuras públicas cuja vida é marcada por grandiosas realizações artísticas e, ao mesmo tempo, por atos de violência extrema. Seu legado é intrinsecamente dividido entre o brilhantismo do “Rei do Bolero” e a sombra do agressor que tirou a vida de Eliane de Grammont. Essa dicotomia força a sociedade a confrontar a questão de como lembramos e contextualizamos artistas que cometeram crimes graves.
O caso de Eliane de Grammont permanece um doloroso lembrete da persistência do feminicídio no Brasil, um crime que, décadas depois, continua a ceifar vidas de mulheres e a chocar a nação. A trajetória de Castilho, portanto, transcende a simples notícia de um obituário; ela se insere em um debate social maior e mais urgente sobre a violência de gênero, o controle e a posse sobre o corpo e a vida feminina. A recorrência de casos de feminicídio impulsiona debates e mobilizações significativas em todo o país, como as recentes propostas de líderes políticos para o enfrentamento da questão e os protestos populares que ecoam em metrópoles como São Paulo, clamando por justiça e o fim da violência contra a mulher. A história de Lindomar Castilho, com seu brilho e sua tragédia, serve como um poderoso (e lamentável) case study sobre a necessidade incessante de promover a equidade, o respeito e a segurança para todas as mulheres, garantindo que a memória de Eliane e de tantas outras vítimas não seja em vão.





