Na véspera do Réveillon, a Praia Vermelha, na zona sul do Rio de Janeiro, transformou-se em um vibrante santuário ao ar livre, acolhendo centenas de fiéis em devoção a Iemanjá, a mística orixá das águas, venerada nas religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé. Com o sol se pondo e a brisa marítima a embalar o ambiente, a tradicional celebração “Presente de Iemanjá” uniu indivíduos de diversas origens em um ato de fé, gratidão e esperança. Mais do que um simples culto, o evento refletiu a rica tapeçaria cultural e o sincretismo religioso que caracterizam o Brasil, marcando a transição para um novo ano com rituais que honram a ancestralidade e a conexão com a natureza, em um espetáculo de devoção coletiva que precede as festividades da virada do ano na Cidade Maravilhosa, reforçando a pluralidade de crenças na capital fluminense.
A Devoção à Rainha do Mar e as Oferendas
Histórias de Fé e Gratidão Pessoal
A antecipação e a profunda fé marcaram o início da celebração. Ana Beatriz de Oliveira, uma arquiteta de 23 anos, foi uma das primeiras a chegar à Praia Vermelha, trazendo em suas mãos um maço de rosas amarelas. Embora Iemanjá seja tradicionalmente associada às cores azul e branco, a escolha de Ana Beatriz, ditada pela disponibilidade do momento, simbolizava uma gratidão profunda e pessoal. Recém-formada e empregada no mesmo escritório onde estagiou antes de sua formatura, ela expressou seu agradecimento pelo ano desafiador e pelas conquistas alcançadas. “Vim agradecer pelo ano. Vim agradecer por eu ter conseguido me formar, porque foi muito difícil”, compartilhou a jovem, destacando a importância da fé e da resiliência em sua jornada acadêmica e profissional, evidenciando como a crença se entrelaça com as vitórias da vida.
A celebração também acolheu os pedidos e as preocupações de indivíduos como Washington Bueno, cabeleireiro e maquiador de 58 anos. Com palmas brancas cuidadosamente escolhidas para a orixá, ele direcionava suas preces não apenas para as demandas pessoais de trabalho, saúde e amor, mas também para uma questão social premente: o combate à violência de gênero. “Nós brasileiros estamos um pouco em conflito. Há questões de respeito ao próximo, né? Tivemos este ano de 2025 com tantas agressões às mulheres”, refletiu Bueno, enfatizando a necessidade de maior conscientização e gentileza na sociedade. Suas palavras ressoaram com o desejo coletivo por um ano de maior harmonia e respeito mútuo, transformando a oferenda em um manifesto social que ultrapassava o individual e clamava por justiça e bem-estar coletivo.
O cenário na Praia Vermelha era de uma beleza singular e rica em simbolismo. Rosas amarelas, palmas brancas e uma profusão de outras flores coloridas adornavam um barco de cerca de dois metros, pintado em azul e branco, que abrigava uma imagem de Iemanjá. Este “Presente de Iemanjá”, organizado pela Associação Umbanda e Cultos Afros (Auca), com o apoio da Coordenadoria da Diversidade Religiosa da Prefeitura do Rio de Janeiro, era o quinto culto da última semana do ano dedicado à entidade. Fiéis depositavam, além das flores, cartas com pedidos e súplicas, perfumes e champanhes, simbolizando a esperança, a purificação e o louvor à Rainha do Mar. A atmosfera misturava tradições iorubás, o vibrante sincretismo religioso brasileiro e a vital preservação cultural, tudo emoldurado pela paisagem imponente da Urca carioca.
Diversidade Religiosa e Desafios de Inclusão no Réveillon Carioca
O Debate sobre Espaços e Reconhecimento Cultural
Apesar do apoio logístico e de segurança oferecido pela prefeitura aos eventos de matriz africana, o fim de ano no Rio de Janeiro revelou um debate sobre a equidade no tratamento de diferentes manifestações religiosas no calendário oficial. Ivanir dos Santos, babalawô, pesquisador e doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), levantou questões sobre o patrocínio municipal a um palco exclusivamente dedicado à música evangélica em Copacabana, na noite do Réveillon. A iniciativa, segundo Santos, evidencia uma possível disparidade no reconhecimento público e na distribuição de recursos. “Não se trata de ser contra o palco gospel, não é esse debate. O debate é haver palco para apenas uma música religiosa”, ponderou o especialista, salientando que diversas confissões, incluindo católicos, muçulmanos, budistas, candomblecistas e umbandistas, também produzem música religiosa para seus ritos e louvores, merecendo igual visibilidade e apoio.
A preocupação de Santos reside no que ele descreve como o “apagamento” de tradições culturais e religiosas que são pilares da identidade carioca. Ele lembrou que foi o povo do Candomblé e da Umbanda quem, na década de 1950, iniciou a tradição de festejar a passagem do ano vestido de branco e realizando cultos e oferendas a Iemanjá na Praia de Copacabana, um costume que se tornou um dos maiores símbolos do Réveillon carioca. A ausência de um espaço dedicado à música dos terreiros, na sua visão, ignora essa contribuição histórica e cultural fundamental. O babalawô expressou o temor de que tal esquecimento possa levar à imposição de uma cultura espiritual “hegemônica”, menos tolerante e aberta a outras formas de crença. Esse cenário levanta discussões importantes sobre o papel do poder público na promoção da diversidade e na garantia de espaços equânimes para todas as manifestações de fé, especialmente em eventos de grande visibilidade como o Réveillon carioca, que é um cartão postal de pluralidade cultural e religiosa.
Sincretismo e o Futuro das Celebrações no Rio
Em resposta às críticas, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, defendeu a inclusão do palco gospel. Ele afirmou que “há uma parcela muito significativa da nossa cidade que gosta de música gospel e que quer — e pode — ter seu espaço”, argumentando que o objetivo é acolher a todos os públicos e ampliar a gama de opções para os festejos de fim de ano. O prefeito destacou que este novo público, que antes não se dirigia a Copacabana para a virada, agora poderá conviver e interagir com aqueles que tradicionalmente realizam oferendas a Iemanjá, em um ambiente de respeito mútuo. Para Paes, essa coexistência é a própria essência do sincretismo religioso brasileiro e da identidade multicultural do Rio de Janeiro, uma cidade que se orgulha de sua diversidade. Essa perspectiva busca equilibrar a oferta de entretenimento e espaços de fé para diferentes segmentos da população, reiterando a vocação da cidade para a pluralidade. O debate, no entanto, permanece relevante para assegurar que a expansão das opções de celebração não resulte na diminuição ou desvalorização de tradições já estabelecidas, garantindo que o Réveillon carioca continue sendo um mosaico genuíno de todas as crenças e expressões culturais que compõem sua rica identidade. A busca por um equilíbrio entre a inovação e o respeito às raízes históricas define o contínuo desafio na gestão de eventos que celebram a transição de ano em uma metrópole tão diversificada como o Rio.






