Pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) alcançaram um marco significativo na gestão da qualidade de laboratórios dedicados à análise de bebidas destiladas. A equipe desenvolveu e implementou ferramentas metrológicas de ponta, incluindo um Material de Referência Certificado (MRC) e Ensaios de Proficiência (EP), que são cruciais para assegurar a confiabilidade e a precisão dos resultados laboratoriais. Essas inovações visam aprimorar o monitoramento de congêneres orgânicos em bebidas como cachaça e vodca – substâncias que, apesar de conferirem características sensoriais únicas, podem ser tóxicas em concentrações elevadas. O trabalho reforça a segurança do consumidor e a integridade da produção de destilados no mercado.
A Essência da Metrologia na Qualidade de Bebidas
O Papel Crucial dos Congêneres Orgânicos
Os congêneres orgânicos representam um componente intrínseco e natural no processo de produção de bebidas destiladas, como a cachaça e a vodca. Essas substâncias são produtos secundários da fermentação e destilação, e são responsáveis por grande parte do aroma e sabor característicos de cada bebida. No entanto, o seu controle é imperativo, pois em concentrações acima dos limites estabelecidos pela legislação, podem se tornar prejudiciais à saúde humana, representando um risco significativo para os consumidores. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) define rigorosamente esses limites aceitáveis, tornando essencial um monitoramento constante e preciso por parte dos laboratórios de análise.
Segundo a pesquisa, para a vodca, os analitos de interesse incluíram acetato de etila, metanol e 2-metil-1-propanol. Já para a cachaça, o foco recaiu sobre metanol, propanol, 2-metil-1-propanol e 2-metil-1-butanol. Embora muitos dos congêneres sejam comuns a ambas as bebidas, a principal diferença reside nos níveis de concentração aceitáveis para cada uma, refletindo suas particularidades de processo e perfil sensorial. É impossível remover completamente essas substâncias sem alterar a natureza da bebida; o objetivo, portanto, é garantir que suas concentrações estejam dentro dos parâmetros seguros.
A Confiabilidade Laboratorial como Imperativo
A metrologia, a ciência das medições, é a espinha dorsal de qualquer sistema de gestão da qualidade, especialmente em um setor tão sensível quanto o de alimentos e bebidas. A precisão dos resultados de análises laboratoriais é fundamental para a proteção da saúde pública e para a credibilidade dos fabricantes. Um laudo impreciso pode ter consequências graves, desde recalls de produtos até danos irreparáveis à reputação de uma marca. Igor Olivares, professor do IQSC e orientador do estudo, compara essa necessidade à produção de um capacete: “Se eu vou produzir um capacete, preciso utilizar ferramentas de metrologia e de gestão da qualidade para garantir que o capacete funcione para aquilo que foi projetado”.
Rhaissa Bontempi, química e primeira autora do artigo que detalha as descobertas, enfatiza que o controle de qualidade vai muito além da simples execução de uma análise. Existe uma vasta e complexa etapa de validação dos resultados que ocorre nos bastidores, garantindo que cada dado seja robusto e confiável. Essa percepção muitas vezes é subestimada, mas é o que confere credibilidade a cada certificado de análise emitido, assegurando que os processos estejam alinhados com os padrões mais exigentes de segurança e qualidade.
Ferramentas Metrológicas Desenvolvidas e Suas Aplicações Práticas
Material de Referência Certificado (MRC): O Padrão de Exatidão
Uma das inovações centrais da pesquisa foi o desenvolvimento de um Material de Referência Certificado (MRC). Este material atua como um “padrão” com concentrações precisamente conhecidas dos congêneres de interesse, semelhante a um peso-padrão utilizado para calibrar balanças. O MRC é crucial para que os laboratórios possam verificar a exatidão de seus próprios equipamentos e métodos de análise, funcionando como um suporte vital para os processos internos de controle de qualidade. A produção do MRC envolveu uma metodologia rigorosa, iniciando com a adição de quantidades conhecidas das substâncias (técnica de spiking) em amostras de cachaça e vodca fornecidas por uma empresa parceira.
Para sua certificação, o material passou por uma série de testes essenciais. Avaliações de estabilidade garantiram a conservação das concentrações a curto e longo prazo, mesmo sob variação de temperatura. Testes de homogeneidade confirmaram a consistência do material entre diferentes frascos produzidos, assegurando que cada unidade do MRC ofereça a mesma referência. Finalmente, a caracterização atribuiu o valor da propriedade com base em métodos analíticos robustos. A equipe optou pelo MRC em vez de um Material de Referência (MR) comum devido à sua maior confiabilidade; o MRC possui um certificado detalhado que descreve sua estabilidade e homogeneidade, tornando-o a escolha mais segura e indicada para laboratórios que buscam a máxima precisão.
Ensaios de Proficiência (EP): Avaliação Externa de Desempenho
Complementando o MRC, os pesquisadores implementaram Ensaios de Proficiência (EP), uma ferramenta externa e imparcial para avaliar o desempenho de laboratórios. Diferente do MRC, que auxilia no controle interno, o EP é uma espécie de “teste cego” no qual os laboratórios participantes recebem amostras com concentrações desconhecidas dos analitos. Eles são então desafiados a determinar esses valores utilizando seus próprios métodos. Esta abordagem permite uma avaliação objetiva da competência técnica do laboratório, revelando a capacidade de seus analistas e a adequação de seus procedimentos.
Para a aplicação do EP, foi enviado aos laboratórios interessados um protocolo detalhado, contendo introdução, objetivo, parâmetros e método de análise sugerido, embora os participantes pudessem optar por empregar seus próprios métodos. Cada laboratório recebeu dois frascos com diferentes materiais de referência e teve a liberdade de escolher quais substâncias seriam avaliadas. A natureza complementar do MRC e do EP é fundamental: enquanto o MRC garante a precisão diária das medições, o EP valida o desempenho geral do laboratório em um cenário real e desafiador. “O MRC deu certo, mas e se só ele não for suficiente? Tem o ensaio de proficiência,” explica Rhaissa Bontempi, destacando a importância da sinergia entre as duas ferramentas para uma gestão de qualidade abrangente.
Aplicação Conclusiva: Contexto e Impacto na Indústria de Bebidas Destiladas
A pesquisa transcende a esfera acadêmica, oferecendo um impacto direto na segurança e qualidade da indústria de bebidas destiladas. A escolha da cachaça para o estudo não foi aleatória; sendo um produto tipicamente brasileiro, a falta de Materiais de Referência Certificados internacionais específicos para ela destacou uma lacuna no controle de qualidade global. A capacidade de produzir um MRC para um produto nacional ressalta a relevância e o diferencial deste estudo, preenchendo uma necessidade crítica e fortalecendo a cadeia produtiva local.
A parceria com uma companhia de bebidas também sublinha a demanda por essas ferramentas em um setor complexo e de alta procura. A indústria de destilados, conforme pontuado por Rhaissa Bontempi, enfrenta desafios contínuos, com lotes de bebidas ocasionalmente apresentando problemas. A dificuldade em monitorar e controlar a vasta gama de produtores torna essas ferramentas metrológicas ainda mais valiosas. É importante ressaltar que as ferramentas desenvolvidas são primariamente destinadas a identificar contaminações naturais, resultantes de variações no processo de produção, e não casos de adulteração intencional. Como explica Igor Olivares, um cenário de adulteração com níveis extremamente altos de metanol, por exemplo, seria facilmente detectado mesmo sem um MRC, devido à discrepância gritante nos resultados. A verdadeira força dessas ferramentas reside na prevenção de riscos à saúde pública e na manutenção de um alto padrão de qualidade para os consumidores de cachaça e vodca, garantindo que as bebidas no mercado sejam seguras e atendam às expectativas de pureza e composição.






