O cenário das viagens internacionais está passando por uma transformação significativa, impulsionada por novas políticas governamentais que buscam monitorar de perto a pegada digital de turistas e visitantes. Recentemente, autoridades dos Estados Unidos anunciaram planos para uma análise aprofundada das publicações em redes sociais de indivíduos provenientes de dezenas de países elegíveis para o Programa de Isenção de Vistos, permitindo estadias de até 90 dias sem a necessidade de um visto tradicional. Essa iniciativa, que prevê o escrutínio de até cinco anos de atividade online, reflete uma tendência global crescente de rigor na fiscalização de fronteiras, onde o conteúdo digital de um viajante pode determinar sua admissão ou até mesmo a deportação, redefinindo as regras de entrada e permanência em diversos territórios.
A Nova Era da Vigilância Digital nas Fronteiras Americanas
Regulamentações e Implicações para o ESTA e Vistos
As autoridades norte-americanas estão delineando um novo conjunto de requisitos para visitantes que utilizam o Sistema Eletrônico para Autorização de Viagem (ESTA), um componente crucial do Programa de Isenção de Vistos. A proposta mais recente sugere a exigência de que os solicitantes forneçam todos os endereços de e-mail utilizados nos últimos dez anos, além de permitir o exame de até cinco anos de suas publicações em plataformas de redes sociais. Embora os detalhes específicos desta medida ainda estejam em fase de consulta pública, com prazo final estabelecido para 8 de fevereiro de 2026, a direção é clara: um aumento substancial na coleta e análise de dados digitais de viajantes internacionais.
Essa política se alinha com uma postura mais rígida em relação à segurança de fronteiras, citada como prioridade por recentes administrações. O rastreamento digital emerge como uma ferramenta poderosa para as agências de alfândega e proteção de fronteiras na avaliação das intenções e do perfil de risco de um indivíduo ao entrar no país. Um exemplo notório, embora contestado pelas autoridades, envolveu um turista norueguês que alegou ter sido impedido de entrar nos EUA após ter um meme encontrado em seu telefone, sugerindo que as buscas em dispositivos eletrônicos são rotineiras e integrais ao processo de avaliação.
Mesmo para cidadãos de países que geralmente precisam de visto para entrar nos EUA, como o Brasil, o escrutínio digital não é novidade. Desde setembro de 2025, solicitantes de vistos não-imigrantes nas categorias H1-B (profissionais especializados), H-4 (dependentes), F e M (estudantes acadêmicos e vocacionais) e J (intercâmbio, professores, pesquisadores e médicos) são obrigados a ajustar as configurações de privacidade de todas as suas contas de redes sociais para “públicas”. Esta medida visa facilitar a verificação necessária para estabelecer identidade e elegibilidade, excluindo, por enquanto, apenas turistas (categoria B-2). A expectativa é que essa tendência de digitalização das revistas fronteiriças se intensifique, com a possível incorporação de inteligência artificial para agilizar e aprimorar a análise de grandes volumes de dados.
O Alcance Global da Fiscalização Digital
Precedentes Internacionais e Consequências de Conteúdo Online
A política americana não é um caso isolado; cada vez mais nações ao redor do globo estão adotando e aprimorando mecanismos de vigilância digital sobre viajantes. A pegada online de uma pessoa pode gerar complicações muito depois de cruzar uma fronteira, demonstrando que o “pense antes de postar” tornou-se um mantra essencial para qualquer viajante. Em 2018, por exemplo, um país insular no Pacífico introduziu uma legislação pioneira que permite a agentes de fronteira exigir acesso a telefones celulares de viajantes, impondo multas consideráveis para aqueles que se recusassem a compartilhar suas senhas. Outro país no Oriente Médio, conhecido por suas rigorosas leis de comunicação, permite a detenção de estrangeiros que publiquem ou compartilhem conteúdo considerado difamatório, como exemplificado por um caso envolvendo um cidadão irlandês que criticou um ex-empregador online.
Os riscos são acentuados pela crescente quantidade de conteúdo sensível que os viajantes geram. A era do “travel porn”, onde a busca por imagens perfeitas e o desejo de competir por curtidas e visualizações impulsionam muitos a extremos, frequentemente ignora as normas culturais locais. Relatos de pesquisas indicam que uma parcela significativa de viajantes não consegue sequer conceber uma viagem sem registrar e compartilhar múltiplas fotos em suas redes sociais semanalmente. Contudo, essa ânsia por conteúdo pode levar a deslizes graves, como visto em 2022, quando uma influenciadora digital e seu cônjuge foram deportados de uma ilha asiática após realizarem um ensaio fotográfico inadequado em um local sagrado, provocando indignação local e exigências de rituais de purificação.
Diante desses incidentes, governos e organizações têm se apressado em educar seus cidadãos sobre a etiqueta digital e as sensibilidades culturais ao viajar. Muitos portais governamentais oferecem guias detalhados sobre as regras de conduta online e offline em diferentes países, alertando, por exemplo, sobre a ilegalidade de promover o consumo de álcool em certas nações asiáticas, o que pode resultar em multas por simples publicações com bebidas alcoólicas. Um especialista em direito internacional, frequentemente consultado sobre questões de mobilidade global, enfatiza que, sob programas de isenção de visto, os viajantes possuem direitos muito limitados nas fronteiras, e a recusa em cooperar com as solicitações dos agentes pode resultar na negação de entrada. Este cenário aponta para um futuro onde a fronteira se estende ao reino digital, tornando a consciência sobre o que se publica online um pré-requisito fundamental para uma viagem tranquila.
Navegando na Complexidade Digital da Viagem Moderna
Em um mundo onde cada vez mais viajantes se tornam criadores de conteúdo, publicando uma torrente de material digital, o espectro do mal-entendido e da ofensa não intencional paira constantemente. A comunicação intercultural revela que diferentes sociedades operam em níveis distintos de “contexto”. Culturas de “alto contexto” — comuns em muitas partes da Ásia e do Oriente Médio — dependem de uma comunicação mais implícita, rica em nuances e gestos simbólicos. Já as culturas de “baixo contexto” priorizam a comunicação verbal direta e explícita. Essa disparidade pode transformar interações aparentemente inocentes em um campo minado de potenciais deslizes, onde a ausência de palavras não garante a ausência de ofensa.
Um exemplo contemporâneo disso é o uso de emojis: um simples ícone de melancia acompanhando um vídeo de um mercado de frutas pode, em certos contextos, ser interpretado erroneamente como um símbolo de antissemitismo ou um estereótipo racial, desencadeando reações inesperadas. Uma palestrante e autora de livros infantis relatou como uma publicação de férias foi tirada do contexto por um contato, levando a acusações e hostilidade que dificultaram o restante de sua viagem. Ela ressalta que, no ambiente digital atual, é extremamente fácil descontextualizar comentários e encaixá-los em narrativas que o autor nunca pretendeu.
Os riscos aumentam quando a fotografia de viagem se torna uma performance, com milhões de pessoas buscando a selfie perfeita usando vestimentas locais ou em locais religiosos. Desrespeitos inconscientes, como virar as costas para um portal sagrado em um santuário xintoísta, podem ofender os moradores locais muito antes mesmo de a imagem ser publicada online. Diante desse panorama complexo, a solução não reside na autocensura total, mas sim na adoção de uma abordagem mais consciente e reflexiva ao postar. Priorizar a qualidade em detrês da quantidade, desvincular-se da pressão de alimentar algoritmos ou atender expectativas de terceiros, e, acima de tudo, estar plenamente atento e presente ao ambiente ao redor, são práticas cruciais.
Observar como as pessoas se vestem, falam e se comportam localmente, buscando integrar-se da melhor maneira possível e evitando transformar os moradores em meros “objetos” para o seu conteúdo, pode transformar a experiência de viagem. O resultado é não apenas uma jornada mais segura e significativa, mas também uma oportunidade para conexões respeitosas com as culturas visitadas, valorizando-as por sua autenticidade e complexidade, em vez de reduzi-las a simples elementos para uma postagem nas redes sociais. A vigilância digital é uma realidade, e a consciência digital é a chave para navegar por ela com sabedoria.
Fonte: https://g1.globo.com






