William DeLima é guarda civil há mais de 20 anos aqui em Piracicaba. Ele atua há 15 anos junto ao Sindicato dos Municipais de Piracicaba, e se destaca também por ter sido fundador e presidente do SindGuarda (Sindicato dos Servidores da Guarda Civil). Atualmente, atua como diretor administrativo da SindGuarda.
Nesta entrevista concedida ao Jornal PIRANOT, DeLima fala sobre uma emboscada terrorista que sofreu em 2002, que o afastou do sonho de continuar na Guarda Civil; conta um pouco de sua carreira e realça, principalmente, seu trabalho à frente da SindGuarda.
Por que o senhor decidiu entrar para a Guarda Civil de Piracicaba?
Sou guarda civil há 20 anos aqui em Piracicaba. Ingressei na Guarda Civil logo após concluir o Serviço Militar. Como todo jovem idealista e patriota, aos 18 anos me alistei e fui voluntário, mesmo morando na zona rural. Me identifiquei com a disciplina, com a hierarquia, com os valores cívicos do Serviço Militar e quis seguir carreira. Daí optei pela Guarda Civil por dois motivos: primeiro porque eu estaria na cidade, afinal a Guarda é municipal; e segundo porque, em 1996, a Guarda Civil havia aprovado o seu estatuto. Fomos uma das primeiras Guardas do país a ter um estatuto próprio e plano de carreira. Até 1995, quem entrasse na Guarda Civil seria guarda até se aposentar; de 1996 em diante, quem entrasse para a Guarda já poderia pleitear um plano de carreira.
Como foram seus primeiros anos na Guarda Civil?
Foi muito bacana. Prestei meu primeiro concurso, passei e minha primeira escala de serviço foi no Pronto-Socorro da Vila Cristina. Aquela região sempre foi muito periférica, com altos índices de tudo, e fui para lá. Graças a Deus, consegui conciliar o exercício da minha função em fazer um bom trabalho a contento. Há uma coisa interessante, mas que muitas pessoas se esquecem: até que minha turma se formasse e fosse enviada ao Pronto-Socorro, os guardas que já estavam nesse trabalho eram chamados de FT (Folga Trabalhada), porque ninguém queria ir para lá. Ninguém queria ir a nenhum pronto-socorro da cidade. Então, o guarda era FT e se pagava um pouquinho melhor, a fim de convencê-lo a ir trabalhar nesses lugares.
Mas por que existia essa situação?
Os prontos-socorros, dos fatores biológicos e de risco, são lugares realmente perigosos. E especificamente no Pronto-Socorro do Vila Cristina, devido aos altos índices de tudo, existiam dois guardas antigos que faziam as chamadas FTs. E quando minha turma se formou, o que ocorreu foi que os recrutas recém-formados foram todos para os prontos-socorros. Resumindo: era um pessoal pronto, porém sem nenhum pingo de experiência para atuar. E ali é complicado, pois você precisa ser policial e agente social ao mesmo tempo. Isso requer que você tenha uma dupla personalidade laboral. Tanto que, três meses depois, no Pronto-Socorro do Piracicamirim, um gurda da minha turma até acabou alvejando e matando um paciente alterado no pronto-socorro. Graças a Deus, eu falo que fui privilegiado por dois aspectos: primeiro em ir para um dos piores prontos-socorros da cidade (o Vila Cristina), onde tive uma bagagem social e humana fantástica; segundo por nunca ter dado nenhum incidente durante um ano que fiquei por lá trabalhando. Após minha saída, vários guardas relataram que tiveram armas roubadas, furtadas, outros foram vítimas de violência.
E daí para frente, como foi?
Em seguida, fui para vários postos de serviço, trabalhei no GEAP (Grupo Especial de Apoio ao Patrulhamento) e, em 2002, fui trabalhar numa viatura de escola de valores, quando fui surpreendido por alguns marginais com o intuito de assaltar um malote.
Como foi essa emboscada que o senhor sofreu?
Eu fui alvejado por 15 tiros, todos de calibre restrito. Meu parceiro faleceu nesse ataque, após levar oito tiros; mas eu, graças a Deus, consegui sobreviver. Fiquei cego, deficiente físico e completamente abalado com o choque pós-traumático. E nesse momento, a Prefeitura virou as costas para mim, me abandonou e me deixou sob a burocracia do sistema frio para que decidissem o que fariam comigo. E o porto-seguro que me auxiliou tanto na minha recuperação psicológica, emocional e física, foi o Sindicato dos Trabalhadores Municipais de Piracicaba e Região. Foi no sindicato que consegui o amparo para que eu restabelecesse as minhas forças. Em 2003, houve uma eleição para membro da chapa, concorri e venci. Foi uma eleição difícil de ser ganha, por conta da grande oposição que teve naquele ano, mas conseguimos vencer a eleição e aí me tornei diretor. Mas eu ainda tinha sequelas por conta da emboscada que sofri. Quando fui trabalhar fardado no dia 28 de novembro de 2002, eu estava em perfeito estado; mas quando retornei para a minha casa, no dia 03 de dezembro daquele ano, eu era cego, aleijado, tinha um corpo coberto por cicatrizes, hematomas e já não era mais o mesmo. Fui diretor atuante no sindicato até 2010.
Esse episódio fez com que o senhor saísse da Guarda?
Embora exista no estatuto da Guarda Civil um dispositivo jurídico que garanta a minha participação, fardado, em qualquer evento cívico ou público, o comandante da Guarda Civil nunca permitiu que eu usasse a farda devido à minha deficiência física. Uma vez fui à Alesp (Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo) para receber uma homenagem e eles pediram para que eu fosse fardado, até porque seria uma condecoração por eu ter sobrevivido aos tiros. Na época, mandei um ofício para o comandante pedindo permissão para que eu fosse receber essa homenagem com a farda. Ali não se tratava do cidadão DeLima, mas do ainda guarda civil DeLima. E ele indeferiu aquele ofício, dizendo que eu era deficiente físico e que não pegava bem uma pessoa deficiente com a farda da Guarda. Tive que ir à paisana para receber essa condecoração. Na época, eu estava na metade do curso de direito, concluí o curso em 2010 e aí, ainda muito chateado, decidi que me dedicaria à advocacia. Decidi que essa seria minha nova carreira. Mas o mundo dá voltas, porque quando eu já estava pronto para partir para novos caminhos, houve uma mudança de legislação a nível federal, e isso permitiu que as Guardas Civis constituíssem um auto próprio. Foi aí que a categoria se mobilizou, me procurou e pediu para que eu a representasse. Aí fui um dos fundadores da SindGuarda e, de 2010 a 2015, atuei como primeiro presidente.
O que o senhor pode nos dizer em relação à emboscada que sofreu?
Naquela época, não era comum notícias de emboscas e atentados contra policiais aqui no Estado de São Paulo. Isso surgiu em 2005 com o PCC, e minha emboscada ocorreu em 2012. A legislação é clara: transporte de valores é atividade de segurança privada, e não pública. Ou seja, é vedada a realização de transporte de valores aos servidores públicos. A lei 13.022, que é o estatuto geral das Guardas Civis, estabeleceu uma série de diretrizes e, entre elas, acredito que a melhor diretriz tenha sido a do comando próprio. Por meio do comando próprio, você colocará no controle da Guarda alguém que já está no plano de carreira, que está na instituição e que conhece o que é a Guarda Civil. Até aquele momento, o comando da Guarda Civil era comissionado. Ser comissionado significa que você está fadado a ser comandado por alguém da área ou fadado à infelicidade de ser comandado por alguém que não é da área. Na última administração que teve do PT aqui em Piracicaba, nós havíamos no comando da Guarda Civil um empresário do ramo de segurança privada. O problema é que ele vendia serviços de segurança privada à sua empresa e mandava que a execução fosse feita pela Guarda Civil. Ou seja, misturou-se o público com o privado de forma irresponsável e inconsequente. Esse comandante, que não tinha identidade institucional com a instituição nem visão jurídica do que compete ou não à Guarda Civil, vendia serviços da sua empresa e mandava que a execução fosse feita pelos servidores públicos. Isso expôs os guardas a uma realidade completamente absurda e a riscos desnecessários, ocasionando, assim, num atentado à instituição. Matar policiais era comum no Rio de Janeiro, mas não em São Paulo. Em 2002, esse atentado que sofri aqui em Piracicaba abalou muito, porque foi em plena luz do dia, na esquina da Rua Fernando Lopes com a Rua Xavantes, na Paulicéia.
Hoje em dia mudou, não é mesmo?
Hoje em dia temos uma comandante de carreira da Guarda Civil. Estamos livres desses professores pardais que querem reinventar a roda.
Que modo esse incidente alterou a sua vida?
Eu me tornei um deficiente visual, sou cego de um olho. Me tornei um deficiente físico, pois sou cheio de limitações. Até 2002, eu fazia todo tipo de treinamento tático, policial e operacional. Já como deficiente, não pude mais fazer esses cursos, aí fui para o conhecimento acadêmico. Fiz três cursos superiores. Me tornei uma pessoa um pouco mais consciente. Porém, o que mais me dói é que estou afastado de um dos principais fatores que me fez entrar na Guarda Civil, que era seguir um plano de carreira. Hoje, como deficiente físico e visual, não posso mais prestar nenhum concurso público na área policial. Isso me afastou do meu sonho e foi a única dor que senti.
Essa emboscada, inclusive, rendeu um livro. Há algum detalhe que não foi para o livro, mas que o senhor gostaria de mencionar aqui agora?
Olha, há muitos! Porém, preciso ser fiel ao meu credo religioso. Graças a Deus, sempre fui lúcido e, segundo as enfermeiras, houve a necessidade de aplicar em mim dez Dormonid para que eu apagasse e entrasse no coma induzido. Eu não estava agressivo, mas muito consciente e precisava apagar. Eu me lembro de tudo e sou capaz de narrar tudo verbalmente. Nem tudo está no livro. Quando decidi escrever o livro, eu ajoelhei e, em minhas orações, pedi: “Deus, faça das minhas mãos instrumentos do testemunho que o Senhor quer que eu compartilhe”. Por isso que algumas coisas eu não coloquei, enquanto outras foram destacadas com um pouco mais de ênfase. Acredito que a resposta das minhas orações está ali, e talvez alguns detalhes não estejam no livro porque não foi o momento. Um dia, uma leitora me mandou uma carta dizendo o quanto foi gostoso ler meu livro devido à linguagem coloquial. Depois que ela me falou isso, eu pensei: “pô, eu tenho faculdade e teria escrito alguns trechos de forma mais bonita, mais elegante”. Tem coisas em meu livro que eu leio e penso: “será que fui eu quem escreveu isso?” Não digo que foi uma psicografia, mas talvez tenha sido o espírito de Deus operando nas minhas mãos para que eu compartilhasse a minha mensagem da forma como que Ele queria.
Qual a linha de atuação da SindGuarda?
Eu havia acabado de concluir o curso de direito, e uma das disciplinas que estavam em pauta naquela época era Conciliação e Arbitragem. Então aproveitei que estava muito afiado naquilo e transformei o SindGuarda num fórum de conciliação e arbitragem. Ali conseguimos evitar inúmeros conflitos entre a categoria e a administração, entre os guardas e os comandos. Eu fui sempre muito conciliador e pacifista. Percebi que como representávamos os interesses da categoria, a própria administração nos via sempre com bons olhos. Uma coisa é pedir algo para quem não é visto, nem lembrado nem valorizado; outra coisa completamente diferente é reivindicar algo para quem é reconhecido. Na minha primeira gestão, peguei o final da administração Barjas Negri e começo da administração do Gabriel Ferrato. 90% dos pedidos que fiz para a categoria foram atendidos. Em 2015, com o término de meu mandato, deixei a presidência do SindGuarda.
E como o senhor enxerga a Guarda atualmente?
Infelizmente eu sinto que, nos último anos, a Guarda Civil entrou numa isolacionismo institucional. Esse é o meu ponto de vista. Não os guardas, mas a instituição Guarda Civil. E isso é muito prejudicial à instituição e à cidade de Piracicaba como um todo. Eu não respondo em nome da Guarda, mas o que estiver ao meu alcance em nome do SindGuarda e em nome da categoria, faremos para reverter essa situação. Já estamos fazendo isso, e andaremos de mãos dadas com outras forças e outras instituições. Uma das minhas metas (não como presidente, mas à frente da SindGuarda) é readquirir o nosso endereço próprio e retomar a revista Boletim Azul Marinho. Até que eu consiga fazer isso, fizemos um outro trabalho paralelo, que é a revista Conta Comigo. O )objetivo dela é afastar a Guarda Civil dessa política do isolacionismo. Se nos últimos anos a instituição vem buscando um política isolacionista, a partir de agora a categoria buscará uma política de integração.
O senhor acha que a Guarda Civil de Piracicaba carece de atenção por parte da Prefeitura do município? Ou não?
Eu não diria da Prefeitura, mas de toda a sociedade como um todo. A sociedade poderia olhar com um pouco mais de atenção aos agentes de segurança pública. A Polícia Civil tem muitos bons profissionais em seu quadro que merecem ser valorizados, assim como a Polícia Militar também conta com profissionais fantásticos. A sociedade precisa rever valores e valorizar quem está aqui para servi-la. Então, não apenas a Guarda Civil carece de atenção, mas a Polícia Militar, a Federal, etc. Eu tenho autoridade para falar em nome da categoria da Guarda Civil, não do resto, mas acredito que a sociedade precisa ter um pouco mais de olhar para quem está aqui.